segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Desmatar o Cerrado é “fechar a torneira da água”, diz especialista

Mercedes Bustamante: “Se se quiser conservar o rio São Francisco, tem que se conservar os 48% de vegetação do Cerrado que ainda estão lá”. Confira a entrevista com a estudiosa de Cerrado:

O Cerrado é fundamental para 8 das 12 bacias hidrográficas brasileiras, e desmatá-lo pode significar “fechar a torneira da água”, diz Mercedes Bustamante, uma das maiores especialistas no segundo maior bioma brasileiro, que já perdeu mais da metade da cobertura original e hoje produz emissões de gases-estufa equivalentes às da Amazônia. “É uma floresta de cabeça para baixo”, diz a professora de ecologia de ecossistemas e mudanças ambientais globais da Universidade de Brasília.

A bióloga estuda o Cerrado há 23 anos e diz que “toda decisão sobre o uso da terra é uma decisão sobre o uso de água”. O produtor rural, em sua visão, não é apenas produtor de alimentos, mas deveria também ser gestor de florestas, de água e de solo. Por isso, o melhor seria dar ao Cerrado uma ocupação de solo diferenciada, com estratégias de conservação de “toda a paisagem”. Mais que isso: os 80% de vegetação que a lei permite que sejam desmatados deveriam ser revistos. “Esse percentual foi definido em determinado contexto, há décadas, mas será que esse contexto se aplica hoje? Deixar só 20% de vegetação será suficiente com o clima em mutação?”, questiona.

“Se se quiser conservar o rio São Francisco, tem que se conservar os 48% de vegetação do Cerrado que ainda estão lá”, ilustra. “Nessa discussão sobre crise hídrica ouvimos falar em grandes obras, em trazer água de lá pra cá, em reúso, mas a variável de uso da terra não entra no debate”, surpreende-se.
Mercedes diz que o Cerrado é a “caixa d’água” do Brasil e que a melhor estratégia de longo prazo para a crise hídrica seria reflorestar todas as margens de rios que abastecem as cidades. “Estamos com uma gestão de risco temerária”, diz. 


A seguir, os principais trechos da entrevista:

Por que o Cerrado é importante?

Mercedes Bustamante: O Cerrado é um ambiente aparentemente tão delicado, que cresce em subsolos pobres, com oferta de água limitada ao período chuvoso e período seco intenso, e ainda assim abriga grande diversidade. Tem grande extensão geográfica e está distribuído no Brasil. Depois da Amazônia é o segundo maior bioma em extensão da América do Sul. Originalmente, cobria quase 25% do país. Faz transição com a Amazônia, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal. É um bioma que une todos os biomas brasileiros e tem papel importante na distribuição de recursos hídricos.

Por que se diz que é a caixa d'água do Brasil?

Mercedes: O Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo. Se desenvolve em ambiente com solos pobres e profundos e com seca sazonal acentuada, suas plantas investem em colocar o carbono nas raízes. Em projeção conservadora, há uma quantidade de carbono em cima do solo e três vezes mais embaixo. A planta é muito maior embaixo da terra do que em cima.

Como um iceberg?

Mercedes: Isso mesmo. Na floresta, a árvore só coloca 20% da biomassa embaixo do solo. Mas as plantas do Cerrado buscam formas de captar água e nutrientes, que são limitados. Durante a seca, o primeiro metro de solo seca completamente, mas as plantas continuam retirando água das camadas mais profundas, com suas raízes muito longas. Com a transpiração, libera a água que capta em forma de vapor, mesmo durante a seca. Bem diferente das pastagens, que têm raízes superficiais, não transpiram e cortam o fluxo de água de regiões mais profundas do solo para a atmosfera.

E com o desmatamento?

Mercedes: Quando se desmata Cerrado, perde-se o que está na parte aérea, mas o estoque de carbono sob o solo é bem maior. No desmatamento, o carbono da parte aérea queima rápido, mas as raízes vão se decompondo ao longo do tempo e liberando carbono. Dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação mostram que as emissões do Cerrado se equivalem às da Amazônia.

Por que tem muita água sob o solo do Cerrado?

Mercedes: Os solos do Cerrado são argilosos, com muita capacidade de retenção de água. Quando se joga água em um vaso com areia ela percola, mas quando se enche o vaso com argila, a água fica retida. Os solos do Cerrado, profundos e argilosos, são como esponjas que armazenam água da chuva. Quando vem a seca, a água vai para o lençol freático. A água superficial que vemos nas veredas é o lençol freático aflorando. Sim, tem muita água sob o Cerrado.

Vereda é sinônimo de água?

Mercedes: No Cerrado, sim. Veredas são áreas úmidas importantes para segurarem a água que aflora. Muitas das nascentes de cursos d’água importantes são áreas de veredas. A presença do buriti as caracteriza, além de espécies herbáceas que parecem capim. Quando se entra em uma vereda, sente-se o solo fofo, encharcado. Essa água depois canaliza e forma veios. O Cerrado tem uma importância hidrológica grande.

O que acontece na seca?

Mercedes: A seca começa em abril-maio e vai até outubro. A precipitação média no Cerrado é alta, em torno de 1.500 milímetros, mas 90% da chuva ocorre durante o período chuvoso. Imagine que o fornecimento de água de uma casa aconteça apenas quatro horas por dia. Quem não tem caixa d'água como faz no período em que não há fornecimento? No Cerrado é o mesmo. Há bom volume de água, mas concentrado em cinco meses. Os solos profundos e argilosos têm capacidade de reter água. No período seco, seca apenas a primeira camada, o resto, não. Veredas conservadas não secam completamente. Em 2014, foi o primeiro ano em que secou a nascente do São Francisco.

Qual a conexão?

Mercedes: A nascente do São Francisco está no Cerrado. O Brasil tem 12 regiões hidrográficas e o Cerrado contribui com recursos para 8 delas. Na bacia do São Francisco, o Cerrado é 48% da vegetação, mas esses 48% contribuem com quase 70% da água que vai para o rio. Para conservar o São Francisco, tem que se conservar os 48% de vegetação do Cerrado que ainda estão por lá.

Então, se desmatar muito o Cerrado corre-se o risco

Mercedes: É como se estivéssemos fechando a torneira da água. A bacia do Paraná, que abastece o Sul, e a do Araguaia-Tocantins nascem aqui. A nascente do São Francisco está na Serra da Canastra, em Minas. Quando se desmata o Cerrado, compromete-se também a dinâmica hídrica do Pantanal. Hoje, o pessoal estuda as conexões com o que acontece na Amazônia, mas isso passa pelo Cerrado também. Toda decisão sobre o uso da terra é uma decisão sobre o uso de água. Temos que pensar que o território, a terra, o solo, é responsável por múltiplas funções.

“Se se quiser conservar o rio São Francisco, tem que se conservar os 48% de Cerrado que ainda estão por lá”

Veredas são protegidas?

Mercedes: Sim, são Áreas de Proteção Permanente [APPs], mas a conservação tem que se dar em toda a paisagem. Se se desmata o entorno da vereda, ela não se mantém. Quando se faz a conversão de Cerrado para pastagem, costuma ocorrer erosão e compactação do solo. Isso modifica a dinâmica hídrica do solo. Máquinas sobre a terra e gado compactam o solo. Vem a chuva e ali não infiltra, vira um rio. Como a água sempre acha o caminho de menor resistência, se não consegue infiltrar e descer, irá fluir pela superfície. Não irá infiltrar e contribuir com a alimentação de rios, lagoas, veredas e represas. Ela flui pela superfície, vem a enxurrada, a erosão carrega sedimentos e isso segue para as represas, que perdem capacidade de estocar, porque chove menos e porque perderam profundidade.

É como se jogássemos terra sobre as nascentes?

Mercedes: Sim. Por isso o Código Florestal tinha que ter foco múltiplo. Olhar para o uso da terra, não só para a produção de alimentos, mas também para a de água. Dessa forma teríamos uma ocupação do território diferenciada. Às vezes me surpreende, na discussão sobre crise hídrica, que falam em grandes obras, em trazer água de lá pra cá, em reúso da água, mas a variável de uso da terra não entra no debate. Uma obra de longo prazo seria reflorestar todas as áreas que abastecem as cidades.

Há sentido em se fazer a transposição do São Francisco?

Mercedes: Pois é. A transposição tem que ser parte de sistema integrado de proteção da bacia. Não adianta resolver o problema lá na ponta sem pensar no lado de cá.

Nascente do São Francisco na Serra da Canastra (MG) / Foto: Mathias Fingermann


Como se regenera um rio?

Mercedes: É impedir que sedimentos sejam transportados e provoquem assoreamento e permitir que as áreas de recarga de mananciais continuem operando. Precisa manter a caixa d' água funcionando. Se reduzirmos o potencial de uma caixa d'água de 500 litros para 100 litros, só vamos armazenar 100 litros. O seguro que temos é a capacidade que o solo de Cerrado tem, sob essa vegetação nativa, de segurar a água quando a chuva vem.

Por que Cerrado e Caatinga têm menor status de proteção?

Mercedes: É o aspecto simbólico da desvalorização desses ecossistemas. É a visão europeia que sempre viu o recurso da floresta apenas como um recurso madeireiro, então as áreas importantes eram as áreas de florestas. Se não se tinha isso, não era relevante. De certa forma, hoje, ainda, com todo o conhecimento científico que se tem, com a importância do Cerrado na geração de água, polinização, controle de pragas, continua a dificuldade de se mostrar que ele é importante. Não sei se as pessoas do interior de São Paulo, onde havia grandes extensões de Cerrado que foram desmatadas, se dão conta que se perdeu a cobertura que ajudava a conservar a água.

Como se chegou ao quadro atual?

Mercedes: A situação, hoje, é fruto de vários fatores: alteração do uso da terra, eventos climáticos extremos como seca e chuvas muito fortes, urbanização e a demanda de água. Se está mais seco ou mais quente, as pessoas tendem a usar mais água e energia, que, no Brasil, é outra parte da equação.

Estamos, então, sob risco.

Mercedes: Estamos com uma gestão de risco temerária. A água é essencial para a agricultura, se o clima se torna mais quente e seco, aumenta a demanda de água para irrigação. Com a distribuição errática da chuva, os padrões de consumo se alteram e vão demandar, nos grandes centros urbanos, mais energia. Se não tem chuva para os grandes reservatórios, o Brasil faz o quê? Aumenta o uso das termelétricas e agrava o efeito-estufa, que foi o que gerou o problema.

É a cobra comendo o rabo.

Mercedes: Exatamente. Se não tivermos uma gestão de recursos naturais integrada, estamos resolvendo aqui, hoje, mas jogando um problema maior adiante.

No Cerrado, há veredas de buritis desmatadas e pivôs de irrigação pegando água do subsolo. Não estão entendendo o processo?

Mercedes: Uma das respostas de adaptação da agricultura ao aumento da estiagem é usar mais água de irrigação. Mas de onde vem a água? Quais os usos que competem com a água de irrigação? Qual é a capacidade do sistema de recarregar? Precisamos abordar isso de forma integrada.

Parte da água de São Paulo vem do Cerrado?

Mercedes: Parte da água que abastece o Sistema Cantareira vem de Minas e tem contribuição do Cerrado. Está tudo conectado. Na estação seca o que veio de chuva talvez não seja suficiente para recarregar o que se perdeu. Quanto mais essa esponja, que é o solo, estiver depauperada, maior fica o déficit.

Quanto já se desmatou?

Mercedes: Calcula-se que já se perdeu 50% da cobertura nativa. A conversão para agricultura e pastagens é muito acentuada na porção Sul, que é a zona de ocupação antiga, mas já se vê a frente de desmatamento subindo para o Oeste da Bahia, e lá a pressão é da soja. Há uma frente subindo pelo Tocantins. Os 50% que restam hoje também estão muito fragmentados.

Não se monitora?

Mercedes: O Cerrado não tem monitoramento sistemático como a Amazônia. Precisamos monitorar os outros biomas e com ferramentas que mostrem a integridade dos ecossistemas. Não é só o corte raso que é preocupante, a degradação também é.

“Na discussão sobre crise hídrica, fala-se em grandes obras, mas a variável de uso da terra não entra no debate”

O Brasil escolheu o Cerrado como sua área de agricultura.

Mercedes: Mas pode ter agricultura. Ainda temos 50% de Cerrado, que é melhor do que restou de Mata Atlântica. Há que se fazer com que as áreas mais convertidas atendam ao Código Florestal e que as APPs estejam bem preservadas. É preciso pensar em um processo de ocupação diferenciado para a área que ainda está preservada, sem deixar de expandir a atividade econômica, mas analisando qual é a atividade compatível com os serviços ecossistêmicos daquela área. Não queremos um processo de desenvolvimento concentrador de renda e degradador. E na porção já muito convertida, a estratégia deveria ser recuperar as áreas degradadas, as APPs e Reserva Legal para que o sistema volte a funcionar.

Por que margens dos pequenos rios têm que ser protegidas?

Mercedes: Senão vão secar. A vegetação que cresce próxima aos rios controla a vazão de água evitando enchentes e segura o fluxo erosivo, retendo sedimentos. É um filtro. É barreira de proteção dos fluxos de água que são frágeis e alimentados por aquela esponja. Se já se arrebentou a caixa d'água, que era a vegetação, a última barreira de proteção são veredas e matas nos pequenos rios. Se também forem destruídos, o que sobra?

Qual a maior ameaça?

Mercedes: O processo de ocupação. Eu já vi produtor que planta até a beira do córrego, o que é proibido e uma imbecilidade, porque a produtividade será mais baixa. A agricultura é a atividade econômica que mais depende dos recursos naturais. O produtor tem papel social como gestor de recursos naturais. A gente o olha como produtor de alimentos, mas também tem que ser produtor de água. É responsável pelos recursos de água e de solo, porque o solo erodido vai embora e não volta mais. Para formar uma polegada de solo demora 500 a mil anos e basta uma enxurrada para levar embora. O solo, mesmo formado continuamente, é um recurso não renovável porque as taxas de perda são muito maiores que as taxas naturais de formação. Temos que ter uma estratégia da paisagem.


Como assim?

Mercedes: É preciso pensar quem alimenta os buritizais e as veredas. Podemos ocupar o Cerrado? Sim, mas qual é a proporção que temos que preservar para garantir a alimentação da água?

A lei permite que se deixe apenas 20% de Cerrado.

Mercedes: Precisamos começar a repensar esses 20%. Foram definidos em determinado contexto, mas será que este contexto se aplica hoje, quando o clima está mudando? O Código Florestal, à exceção da transição com a Amazônia [onde tem que se preservar 35% de Cerrado], diz que pode-se desmatar até 80%, preservando 20%, mediante licença ambiental. Quer dizer que potencialmente pode-se fazer isso, mas não significa que deve ser autorizado. É o momento em que o poder público, o Estado, os prefeitos, os produtores, os órgãos de meio ambiente têm que começar a olhar, quando fazem um licenciamento de supressão de vegetação, se realmente pode-se desmatar os 80% previstos em lei. Talvez em região onde já houve conversão acentuada, há áreas importantes de recarga de manancial e o melhor seria, por exemplo, autorizar só o desmate de 50%.

Foto: IBAMA - MT

Dá para ter agricultura no Cerrado?

Mercedes: Sim, mas temos que mudar. Tenho que considerar a minha propriedade em conjunto com a do fulano, do outro ali e ver quanto cada uma de nossas propriedades contribui com a conservação de um recurso hídrico. A nascente pode estar na propriedade do vizinho, mas os solos que a abastecem estão na minha terra e na tua. Se só ele preserva, não adianta. Essa análise tem que sair da escala da propriedade e ir para a escala da paisagem.


A senhora defende a revisão dos 20%?

Mercedes: Isso politicamente é difícil. Mas se tivermos os 20% bem usados, com mais 10% de APP preservados, ainda se tem 30% funcionalmente operando. Onde existem grandes extensões, temos outras alternativas? A Embrapa diz que temos enormes áreas já degradadas, para onde o Brasil pode expandir sua produção sem precisar converter nenhuma nova área.

E o fogo no Cerrado?

Mercedes: O fogo é um fator natural do Cerrado. Acontecem grandes queimadas causadas por relâmpagos sobre o material seco. Se o fogo queima de vez em quando, como a vegetação tem uma capa de proteção de cortiça e capacidade de rebrotar a partir das raízes, perdia-se a parte aérea, mas rebrotava rápido. A vegetação era resiliente e o fogo tem papel importante no ciclo dos nutrientes. Mas quando se queima com frequência, a vegetação não tem capacidade de responder e o fogo vira fator de degradação. Não é excluir o fogo no Cerrado, mas manejar.

Manejar fogo?

Mercedes: Sim, e evitar em áreas agrícolas. Fogo para rebrotar a pastagem acontece em áreas enormes, e se sair de controle, ninguém segura. Entra na vegetação nativa, que já está seca e depauperada, e leva embora. Cerca de 60% a 70% das queimadas no Brasil ocorrem no Cerrado, que é onde se precisa mais da vegetação para conservar água. A situação é crítica.

Como resolver?

Mercedes: Se se fizer um desenho inteligente podem-se conectar áreas de Reserva Legal e formar corredores de biodiversidade. E ver qual o desenho que mais contribui para produção de água. Precisamos juntar a gestão agrícola, florestal e de água em uma coisa só, porque as propriedades rurais fazem as três coisas.


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Entrevista publicado no jornal Valor Econômico, em 21 de julho de 2015. Disponível em: <http://www.valor.com.br/brasil/4142706/desmatar-o-cerrado-e-fechar-torneira-da-agua-diz-especialista>

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ACESSE TAMBÉM: 



A sede do progresso e o progresso da sede, nº 39 (mar./abr. 2015) da Revista POLI - Saúde, educação e trabalho

quinta-feira, 14 de maio de 2015

CERRADO EFERVESCENTE - FESTIVAL BANANADA 2015 (11 A 18 DE MAIO EM GOIÂNIA/GO)




CERRADO EFERVESCENTE: BANANADA 2015

A temperatura ferve nesta semana em Goiânia, onde está rolando o Festival Bananada 2015, que chega à sua 17ª edição anual consecutiva congregando alguns dos mais esplêndidos talentos da música brasileira - como Criolo; Caetano Veloso; Apanhador Só; Pato Fu; Boogarins; Vivendo do Ócio; Carne Doce; Garage Fuzz; Lê Almeida; Hellbenders; etc.. - e timbradas atrações internacionais (como J Mascis, o vocalista do Dinosaur Jr; King Tuff; Tropikillaz).

Na foto que ilustra o post, pirem no Centro Cultural Oscar Niemeyer, onde o coletivo Bicicleta Sem Freio aproveitou a ocasião festiva para brindar a capital goiana com um acachapante mural. Que traz a marca da já tradicional estética stoner-tropicalista que caracteriza o traço psicodélico-pequizado destes mestres-do-traço. É como se um clipe do Queens of The Stone Age, em especial a animação hippie-punk "Go With the Flow", tivesse escapado da tela e ido esparramar-se sobre aquele prédio arquitetonicamente impressionante que Niemeyer edificou cá na terra dos Goyazes...

Confira o site oficial do Festival e go with the flow! 




15 de maio - sexta feira @ Centro Cultural Oscar Niemeyer

01h00 PATO FU - Palco Pyguá

00h00 BOOGARINS - Palco Yguá

23h15 ALLAH - LAS (EUA) - Palco Pyguá

22h30 WANNABE JALVA- Palco Yguá

21h45 FRANCISCO EL HOMBRE - Palco Pyguá

21h00 JALOO - Palco Yguá

20h30 SCALENE - Palco Pyguá

20h00 BANG BANG BABIES - Palco Yguá

18h30 PABLO KOSSA - Goiânia Crew Attack

17h00 MAURÍCIO MOTA - Goiânia Crew Attack




16 de maio - sábado @ Centro Cultural Oscar Niemeyer

01h00 TROPKILLAZ - Palco Pyguá

00h00 BONDE DO ROLÊ - Palco Yguá

23h15 KAROL CONKA - Palco Pyguá

22h30 J MASCIS (EUA) - Palco Yguá

21h45 APANHADOR SÓ - Palco Pyguá

21h00 KING TUFF (EUA) - Palco Yguá

20h30 CAMERA- Palco Pyguá

20h00 LÊ ALMEIDA - Palco Yguá

19h30 CARNE DOCE - Palco Pyguá

19h00 CAMARONES ORQUESTRA GUITARRÍSTICA- Palco Yguá

18h00 GUILIANO MAIA - Goiânia Crew Attack

16h30 THIAGO RODRIGUES - Goiânia Crew Attack

15h00 MATIAS - Goiânia Crew Attack




17 de maio - domingo @ Centro Cultural Oscar Niemeyer

22h45 CRIOLO - Palco Pyguá

22h00 HELLBENDERS - Palco Yguá

21h15 VIVENDO DO ÓCIO - Palco Pyguá

20h30 GARAGE FUZZ - Palco Yguá

19h45 MASKAVO ROOTS 20 ANOS - Palco Pyguá

19h00 CADDYWHOMPUS (EUA) - Palco Yguá

18h15 MAGALY FIELDS (CHILE) - Palco Pyguá

17h30 MARRERO - Palco Yguá

16h50 GASPER - Palco Yguá

15h00 AR É MÚSICA - Goiânia Crew Attack

sábado, 21 de fevereiro de 2015

PALESTINOS DA PASSAGEM [DOC] - Manifestação da Frente De Luta Pelo Transporte Público, Goiânia (20 02 2015)


Goiânia, 20/02/2015.

Estivemos na 1ª Manifestação da Frente De Luta Go contra o aumento de 50 centavos na tarifa do transporte público em Goiânia. A danada saltou de R$2,80 para R$3,30 e está entre as 3 mais caras do país.

Uma bandeira da Palestina tremulava nas mãos dos manifestantes que caminhavam e cantavam na vanguarda da marcha quando, nas imediações do Terminal da Praça da Bíblia, as bombas brucutus da PM começaram a chover sobre a juventude combativa de Goiânia.

Não tardaram as lágrimas nos olhos, a ardência na garganta, a sensação de sufocamento, tudo cortesia desse entulho autoritário que nos legou a Ditadura Militar - a PM - e que viola cotidianamente a liberdade de expressão e manifestação na pólis, atirando bombas tóxicas de (d)efeito moral, em nome da “ordem” e “segurança”. Cada bomba de gás lacrimogêneo custa mais de 1.000 reais; cada vez que uma delas explode, é um leito a menos nos hospitais, um computador a menos nas escolas, um indignado a mais pronto a apedrejar o Choque como os palestinos fazem contra os tanques de Israel.

Estávamos lá, professores universitários e estudantes, cinegrafistas e jornalistas, punks e Black Blocs, militantes de partidos de esquerda e vendedores de algodão-doce e pipoca, e todos - manifestantes e testemunhas - foram brindados com uma chuva de chemical warfare, cortesia do Marconi, quando chegavam ao terminal. Cof, cof!

"Protestar não é crime" e "Pelo direito de livre manifestação" eram algumas das palavras-de-ordem carregadas a desfilar pelas ruas. Entre os gritos entoados em coro estavam: "Se não abaixar, o pau vai quebrar!", e o clássico punk da banda goiana Señores: "Recua, polícia, recua! O poder popular está na rua!"


A mídia burguesa pode até armar seu barraco clichê e dizer que está em questão uma guerra entre os vândalos e depredadores, de um lado, e os protetores heróicos da ordem pública, de outro. A Tv Anhanguera, a Globo de Goiás, foi previsivelmente patética em sua reportagem, criminalizadora dos manifestantes e que bate palmas para a truculência policial.

Hoje, a juventude radicalizada de Goiânia, empunhando bandeiras vermelhas do MEPR, camisetas do Che Guevara e do Bob Marley, portando dreadlocks e skates, demandava ser ouvida em sua revolta. Às dúzias erguiam os dedos-médios e bradavam impropérios para o helicóptero sinistro da PM que voava baixo ao redor de um abutre solitário.

Uma ou outra pedrada foi dada, de fato, no banco Santander da Av. Anhanguera, mas que não passou de um arranhão, que não trará dano sério nenhum à mega-corporação. Aliás, poucos dias após a revelação do escândalo HSBC com os leaks suíços, é mais compreensível do que nunca que a fúria popular - pelo menos dos elementos mais bem-informados sobre as maracutaias de nosso capitalismo global - volte-se contra bancos privados mafiosos.

Alguns lixos foram incendiados, algumas toscas barricadas foram improvisadas - amostras do ímpeto combativo de parte dos manifestantes. Um carro da imprensa - do SBT, se não me engano - foi capotado, um sinal de que o conservadorismo, o fascismo e o mandonismo tão comuns na mídia comercial de massas também irá sofrer represálias nas ruas, como ocorreu nas Jornadas de Junho de 2013, caso insista em criminalizar manifestantes e aplaudir quando a PM desce o pau.

"Não pago, não pagaria! Transporte público não é mercadoria!", entoou a manifestação diante do Centro de Aulas da UFG (Universidade Federal de Goiás). Na real, é isso: o que está em questão é todo um sistema econômico mafioso, que transforma todos os serviços públicos em mercadoria, que insiste em aplicar a cartilha tucana da Privataria. Os interesses de uma elite de empresários vão prevalecendo sobre os direitos-de-ir-e-vir da massa da população; alguns enchem o rabo com milhões de dólares, que grandes bancos depois ajudam a esconder na Suíça ou sei lá onde, enquanto a gente anda espremido no Eixão, como sardinhas numa lata de ferro tamanho Busão…

É um pouco de tudo isto, e muito mais que ainda não tive fôlego de narrar neste texto corrido, o que está documentado neste filme, registrado hoje nas ruas nuas e cruas, editado na correria e urgência Ninja, e que publico a fim de pôr em comum algumas imagens dos agitos políticos que têm tomado o espaço público em Goiânia neste começo de 2015.

O doc foi batizado brilhantemente pela Gisele Toassa como “Os Palestinos da Passagem”.

Foto: Ruber couto, Cristovão Matos, Daniele Reis

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

"Uma breve história (filosófica) da felicidade" no Glück Project (com Camus, Giannetti, Comte-Sponville, Epicuro, Vicente de Carvalho etc...)

Foto 1
"Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta."
ALBERT CAMUS, Núpcias
O DIREITO INALIENÁVEL DE CAÇAR A VIDA FELIZ

Não são só os filósofos que estão sempre em seu encalço. À caça de felicidade vamos todos, embriagados pelo sonho e impelidos pelo coração (que tem razões que a própria razão desconhece, como dizia Pascal). “A felicidade sempre foi e continua sendo um grande fim, se não a finalidade suprema, em nome do qual se justificam escolhas na vida pública e privada” – escreve Eduardo Giannetti (Felicidade, Cia das Letras, p. 68).

Dizer que a felicidade é a finalidade suprema, oniperseguida, deixa subentendido que os meios escolhidos para atingir este fim podem ser fracassados, ineficazes, desastrosos. Talvez para ser feliz mesmo a gente tenha que insistir e persistir na infelicidade, tropeçando nos percalços de que os caminhos do viver estão repletos – e aprendendo com as feridas e os tombos?

Dá pra dizer que não há sociedade, contemporânea ou histórica, onde a busca da felicidade inexista – ela é perseguida em toda parte, deveras, mas em diferentes épocas e contextos socioambientais vai adquirindo múltiplas faces. Ademais, adquire sentidos os mais diversos e contraditórios em diferentes bocas: Santo Agostinho, em sua época, contava não menos que 289 opiniões diferentes sobre o tema; e hoje em dia o mercado editorial registra uma enlouquecedora quantidade de tratados filosóficos, livros de auto-ajuda, sermões de gurus, em uma Babel de diferentes receitas para atingir a beatitude.

Da felicidade, pode-se dizer que é a universalmente perseguida, se pelo termo “universal” entendermos não uniformidade, homogeneidade e monotonia, mas presença em todas as latitudes e longitudes. Tanto indivíduos quanto sociedades estão sob o encanto desta busca pela melhor vida e os problemas da ética não estão limitados aos filósofos mas dizem respeito a todo mundo e qualquer um.

Um bom exemplo da ampla gama de diversas manifestações históricas da perseguição à felicidade é a Europa quando o zeitgeist da Idade Média foi revolucionado pelo Iluminismo. Neste ponto-de-mutação, escancararam-se duas visões-de-mundo antagônicas sobre aquilo que a Declaração de Independência dos EUA (1776) declara então ser um direito humano inalienável: “the pursuit of happiness”. A perseguida torna-se então um direito-do-cidadão, a ser respeitado pelas repúblicas democráticas, nada menos que um pilar da pólis. “Consideramos estas verdades como auto-evidentes: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade...”

FELICIDADE: UM PRATO QUE SE COME SÓ QUANDO MORTO?


Na Idade Média, a história era outra: a Cristandade medieval acreditava na pecaminosidade da perseguição aos prazeres e alegrias mundanos; solicitava-se do rebanho de fiéis que carregasse sua própria cruz pelo vale de lágrimas da Terra e que deixasse para depois da morte o gozo de uma paradisíaca felicidade. A tradição judaico-cristã, de seus primórdios até hoje em dia, tende a prometer aos aflitos uma bem-aventurança do além-túmulo, entronando a fé e a esperança como virtudes teologais.

Em radical contraste, a visão de mundo que associamos ao Iluminismo e à Revolução Francesa (e também à Independência dos EUA), tem a ver com uma maré montante de secularismo, de crítica contra as monarquias absolutistas e os pilares teocráticos que as sustentavam. Na França, figuras como Voltaire, Diderot e Holbach ergueram suas vozes, com lábia afiadíssima, para denunciar como farsa a promessa de um paraíso transcendente e criticar como engodo as pregações do ascetismo judaico-cristão, que mandava macerar e torturar a carne para melhor liberar o alma.

Neste ponto-de-mutação, quando a Cristandade Medieval, em sua decadência, vai cedendo lugar aos poucos aos avanços da luz que os Esclarecidos traziam acesa em suas tochas, a felicidade torna-se exigência de algo a ser vivido aqui-e-agora, nesta vida, antes da morte e não mais depois dela. Em seu livro A Euforia Perpétua – Ensaio sobre o Dever de Felicidade, Pascal Bruckner pondera que o cristianismo não negava a aspiração humana à felicidade, mas colocava-a fora de alcance, seja no Éden de antes da Queda, seja no futuro Reino dos Céus, prometido aos fiéis. “O século XVIII iria se contentar em repatriá-la, trazendo-a aqui para baixo.” (Bruckner, pg. 22) De objeto de nostalgia e esperança, a felicidade torna-se agora um imperativo do presente.

Como aponta Eduardo Giannetti, “o século XVIII deslocaria o ponteiro da confiança no progresso e no aumento da felicidade humana ao longo do tempo até o ponto mais extremo de que se tem notícia nos anais da história intelectual. (…) Na aurora do pensamento moderno, sob o efeito inebriante da ‘tripla revolução’ (científica, industrial e francesa), a crença no progresso foi aos céus. A equação fundamental do iluminismo europeu pressupunha a existência de uma espécie de harmonia preestabelecida entre o progresso da civilização e o aumento da felicidade.” (Giannetti, pg. 22)

As ideologias religiosas monoteístas, em especial judaicas e cristãs, diziam que a felicidade era um prato que a gente só come morto, um banquete a que só tem acesso o espírito depois de liberado do corpo; já o iluminismo instaurou outro regime, uma espécie de “terra prometida da razão secular” (Giannetti, pg. 26), que pretendia conduzir à humanidade à felicidade em vida através do progresso material, da dominação ampla e irrestrita da natureza.

A ideia religiosa de que a felicidade é um prato que só se come morto sofreu sob o impacto de saraivada de críticas (não só dos iluministas, mas também de figuras posteriores como Ludwig Feuerbach e Karl Marx), de modo que essas crenças caem em progressivo descrédito, a ponto de Nietzsche, na segunda metade do séc. XIX, diagnosticar na Europa os sintomas da “morte de Deus” e apontar a necessidade de uma “transvaloração dos valores” que tornasse o ideal ascético, enfim, um item de museu.

Mas também o ideal iluminista é amplamente criticado por “dar livre curso a certos impulsos e fantasias dos homens, especialmente no campo das aspirações de ganho monetário e consumo material”; “representa uma aposta monumental na conquista da felicidade pela crescente, violenta e sistemática subjugação do mundo natural aos propósitos e caprichos humanos. (…) Desse modo poderíamos recriar pelo engenho e sagacidade um novo jardim das delícias, um paraíso tecnológico de turbinas, robôs, viagras e disneylândias no qual o homem se faria um deus sobre a terra… Vejam no que deu brincar de aprendiz de feiticeiro na manipulação do meio ambiente e no consumo pantagruélico de recursos naturais. A ameaça de uma catástrofe ecológica não deixa de ser um espantoso paradoxo desta civilização que fez da racionalidade e do progressos os seus grandes princípios unificadores.” (Giannetti, 39-40)

No século XX, mesmo após duas guerras mundiais, mesmo após bombas atômicas e campos de extermínio, prosseguiu-se perseguindo a felicidade, ainda que por outras vias: alguns dos movimentos mais importantes da contracultura dos anos 1950 e 1960, por exemplo, buscavam inspiração no misticismo oriental (zen-budismo, hinduísmo, hare-krishna…), reavivavam um hedonismo de sabor dionisíaco (evocando o espírito livre nietzschiano…), lançam-se à política sob a influência de maoístas, Black Panthers e Ches… Nos grandes levantes da juventude dos anos 60, sob a influência de Marcuse e Debord (dentre outros), as ruas e os festivais ousavam demandar: que os sacerdotes não venham mais nos pregar que somos pecadores só porque exigimos “gozar sem entraves”, como se reivindicava em Maio de 68, e que os poderes tirânicos cessassem de perseguir e pisotear todos aqueles que, à maneira de beatniks e hippies, cantam e dançam em Woodstocks em louvor à paz, ao amor, à justiça – pra já e não pra depois!


O LABIRINTO DA ESPERANÇA E DO TEMOR
Felicidade
Só a leve esperança, em toda a vida,
 Disfarça a pena de viver, mais nada: 
Nem é mais a existência, resumida, 
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada, 
Sonho que a traz ansiosa e embevecida, 
É uma hora feliz, sempre adiada 
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos, 
Árvore milagrosa, que sonhamos 
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos 
Porque está sempre apenas onde a pomos 
E nunca a pomos onde nós estamos.
Vicente de Carvalho

A recorrência, na linguagem, de termos como perseguição da felicidade [pursuit of happiness] é um índice da frequência com que a felicidade nos escapa. (O filme estrelado por Will Smith, baseado no livro de Chris Gardner, uma saga-da-vida-real que pretende ilustrar-nos sobre o caminho que leva da miséria ao luxo, da pobreza à Wall Street, não chama-se justamente A Busca Pela Felicidade [The Pursuit of Happyness]? )

Perseguida sempre pois raramente possuída, ela só parece conceder-nos pequenas fatias de tempo feliz, mas nunca a felicidade duradoura. Não somos poucos aqueles que contam os dias felizes como minoritários, na quantidade total de dias que engloba uma vida de mortal como a nossa. Não somos poucos aqueles que consideram que são mais comuns e frequentes aqueles dias em que padecemos sob o sofrimento, oprimidos por trabalhos estafantes e não-recompensadores, tolhidos por temores e melancolias, incertos quanto ao futuro, insatisfeitos no amor e cegos quanto à significação última de tudo – em especial da nossa função e sentido no conjunto cósmico completo.

Há filósofos que juram que vão chegar ao túmulo sem terem deixado por um único dia de ter coração e mente afligidos por alguma dor, alguma culpa, alguma preocupação, alguma angústia… Da vida, tudo o que se pode dizer é que nela misturam-se e mesclam-se, na imanência concreta do fluxo cósmico, os afetos alegres e os tristes, os prazeres e as dores, os êxtases e as depressões, tudo junto e misturado numa coisa só. Começar a compreender o mundo nestes termos é dar aquele passo que, segundo Nietzsche, é essencial para que a filosofia siga avante: ir além do Bem e do Mal, cindidos em domínios separados.

Se perseguirmos uma felicidade que fosse só alegrias, uma condição purgada de todos os afetos tristes, um êxtase duradouro e sem desdouro, corremos o risco de estarmos perseguindo uma quimera. E infelizes justamente pois perseguimos o que não existe. Às vezes o abismo que nos separa da felicidade é cavado por nós mesmos: imaginamos algo de quimérico e irrealizável cuja ausência continuada nos dilacera. Talvez convenha, pois, distinguir entre a felicidade como vivência/experiência e como ideal/quimera. A felicidade vivida em carne-e-osso, e a felicidade meramente sonhada e perseguida.

O filósofo francês André Comte-Sponville tem vasta obra dedicada a nos esclarecer sobre este problema: em sua obra O Mito de Ícaro, composta por Tratado do Desespero e da Beatitude e Viver, realiza uma crítica filosófica magistral da esperança, que considera um afeto triste, fruto da impotência e da ignorância, sempre geradora de temores e inquietudes. A esperança é como uma idealização da ausência que nos impede de amar o real em sua presença. Quando a felicidade é apenas uma esperança, e não uma vivência, estamos na infelicidade; quando a felicidade apenas esperamos, sentados com a bunda no sofá, ao invés de agir e amar no sentido de inventá-la, estamos na infelicidade.

“Da caixa de Pandora, na qual fervilhavam os males da humanidade, os gregos fizeram sair a esperança em último lugar, por considerá-la o mais terrível de todos. Não conheço símbolo algum mais emocionante do que este”, escreve Albert Camus em Núpcias.

A esperança, para André Comte-Sponville, é apenas uma das modalidades do desejo – e justamente o desejo como falta, como Platão o definia, ou o desejo como sofrimento, para falar como Schopenhauer e Buda. “O que é a esperança? É um desejo que se refere ao que não temos (uma falta), que ignoramos se foi ou será satisfeito, enfim cuja satisfação não depende de nós” (Felicidade, Desesperadamente, p. 58). Donde a definição clássica e sintética: “esperar é desejar sem gozar, sem saber, sem poder”.

“Só esperamos o que não temos, e por isso mesmo somos tanto menos felizes quando mais esperamos ser felizes. Estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca. A partir do momento em que esperamos a felicidade (“Como eu seria feliz se…”), não podemos escapar da decepção… É o que Woody Allen resume numa fórmula: “Como eu seria feliz se fosse feliz!” (Felicidade, Desesperadamente, p. 37).


Lembrem-se do que diz a canção de Geraldo Vandré, “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer…”. Pois quem sabe e pode, age; quem ignora e não pode é que espera e reza. Quem espera não goza: teme e sofre. A palavra esperança, que carrega a “espera” em seu ventre, indica o suficiente o erro em que incorremos quando esperamos ser felizes. A felicidade não é questão de espera, mas sim de ação, criação, invenção. Não vem de graça, de mão beijada, mas precisa ser construída – e tem quem diga que não é construção passível de ser erguida a sós. Donde a importância fundamental do amor e da amizade: é impossível ser feliz sozinho.
O sábio, pois, não espera nada: vive no presente, impulsionado pela força alegre de seu desejo, preferindo sempre a ação à espera, a intervenção ativa à reza, o amor à carência, sem temores nem desencantos. Como sintetiza Sponville:

“Como esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sábio não espera nada. Não que ele saiba tudo (ninguém sabe tudo), nem que possa tudo (ele não é Deus), nem mesmo que ele seja só prazer (o sábio, como qualquer um, pode ter uma dor de dente), mas porque ele cessou de desejar outra coisa além do que sabe, ou do que pode, ou do que goza. Ele não deseja mais que o real, de que faz parte, e esse desejo, sempre satisfeito – já que o real, por definição, nunca falta: o real nunca está ausente -, esse desejo pois, sempre satisfeito, é então uma alegria plena, que não carece de nada. É o que se chama felicidade. É também o que se chama amor.” (F.D., p. 76)

A receita para a infelicidade é justamente sonhar uma vida radicalmente diferente do que aquela que realmente vivemos. Os infelizes não cessam de projetar no futuro uma utopia pessoal que insatisfaz com o presente que se tem – é o real que nunca está à altura do sonho. Por exemplo: aquele que sonha em ganhar 100 milhões na megasena, e tem esperança de que isso representaria um encontro marcado com a felicidade perpétua, não estaria na ilusão, apostando suas fichas em algo de improvável, condenando-se à frustração perene dos perdedores crônicos na loteria? Ao invés da largar tudo nas mãos da sorte, não seria melhor arregaçar os braços e pôs mãos à obra para a construção e invenção da felicidade, ainda que sob restrições orçamentárias?

OS TESOUROS DE DENTRO

Eis uma das controvérsias que opõe os pensadores quando o tema é a felicidade: a intensidade da ênfase que deve ser dada aos elementos ditos “exteriores” ou “objetivos” na determinação concreta de um bem-estar subjetivo durável. O príncipe Sidarta Gautama, é bem sabido, abandonou o luxo do palácio e todos os confortos da vida principesca, optando com os pés por uma existência de buscador-de-sabedoria, nômade e frugal, que declara através de sua atitude que as riquezas exteriores importam bem menos – quase nada! – em comparação aos tesouros de dentro.

A atitude do Buda simboliza a muito comum recomendação de desprendimento e desapego, como se feliz fosse aquele que sabe desprender-se dos vínculos entristecedores e dos desejos insuportáveis (pois insaciáveis) de glória, riqueza e poder. Sob o nome de “ascetismo” – esse fenômeno que, como Nietzsche bem viu, é comum a muitos credos religiosos, e transcende mesmo o domínio das religiões, instituídas ou místicas, deixando sua marca indelével também em algumas filosofias pretensamente seculares (Schopenhauer, Cioran…) – podemos abarcar as doutrinas que desprezam as “exterioridades”. Digamos, esquematicamente, que há uma rixa entre ascéticos versus sensualistas.

Um dos elementos mais interessantes no budismo é seu ponto-de-partida: o sofrimento, indubitavelmente real e concreto, que a condição humana comporta, e isso pelo simples fato de sermos mortais e passíveis de adoecimento, inapelavelmente destinados à tumba, seja pela via do envelhecimento ou pela precoce doença ou acidente fatal. A doutrina búdica nasce para ser remédio para males concretos – Buda fisiologista e psicoterapeuta! – que serve como caminho a ser percorrido no processo de superação da ignorância samsárica. Uma terapêutica da vontade, pois, renovadora dos fluxos energético-existenciais.

A proposta búdica é vencer a tirania dos desejos brutos e cegos, fazendo com que reine sobre eles uma sábia consciência nirvânica. O ponto-de-partida da busca búdica é a descoberta da dor de existir e a vontade de viver menos mal: desta base de angústia, poderíamos dizer, nasce a árvore Bodhi. A semente da árvore debaixo da qual Sidarta atinge a Iluminação precisou, para germinar e erguer-se em galhos, folhas, frutos e flores, do influxo indispensável de esterco, chuva, minhocas e lágrimas…

Walden

Em figuras como Thoreau, Gandhi e Pepe Mujica encontramos o elogio de uma união entre sabedoria e frugalidade, que é também fundamental no budismo: mais vale uma cabana de madeira às beiras do lago de Walden, habitada por um sábio escritor, do que uma mansão luxuosa em metrópolis poluída e cheia de apartheids, habitada por um milionário ignoramus.

A riqueza, é claro, permite gozar de certos prazeres sensíveis refinados (vinhos caros, carros de luxo, viagens a ilhas tropicais de beleza exuberante, o que seja), mas nunca se pode afirmar com certeza que o bilionário é mais feliz que o pobretão; há príncipes e reis que se suicidam ou agem como psicopatas homicidas (as páginas de Shakespeare estão deles repletas), e há mendigos e ciganos despossuídos, iluminados, que parecem abençoados por uma intensa alegria-de-viver.

O Iluminado, porém, é uma raridade estatística; a multitude é vasta, ignara e sofrente. Para citar Eduardo Giannetti, não é raro que a gente sinta que “a consciência pesa. Em casos extremos, o tormento da vida ciente de si adquire tal força que o animal humano reflete e contempla com amarga nostalgia a perda de sua inocência animal. O que nos aconteceu? De onde a sina de um viver cindido e aflito, expectante do inalcançável e à míngua de explicações?” (Felicidade, pg. 143)

Se não gera grande controvérsia afirmar que a felicidade é a finalidade suprema que indivíduos e coletividades perseguem, a coisa muda quando saltamos para a conclusão de que o dinheiro é o meio supremo para alcançá-la. Neste ponto, multiplicam-se aqueles que afirmam, por experiência ou raciocínio, que dinheiro não compra felicidade (ainda que te leve para sofrer em Paris). A canção de McCartney sintetiza bem o argumento: “money can’t buy me love.” Apesar das lorotas dos publicitários, é preciso sublinhar que a felicidade não é um item à venda em shopping centers e supermercados.


Para conquistar a felicidade, que ele concebia como tranquilidade (eutymia), Sêneca recomendava a parcimônia, a frugalidade, uma vida retirada, “uma cama que não seja adornada de modo exagerado”, “roupas que sejam caseiras e baratas”, “comida comum que seja encontrada em qualquer lugar, que não seja pesada nem ao bolso nem ao corpo” (Da Tranquilidade da Alma, L&PM, p. 36-37) – em suma, recomenda que não vivamos uma vida de atribuladas perseguições ao ouro, ao poder, à fama, a tudo aquilo que acende a inveja alheia e provoca distúrbios na placidez da alma. É a maneira estóica de conceber a vida feliz, e que tem certas similaridades com a doutrina epicurista da ataraxia, ou paz-de-espírito, com algumas diferenças importantes: Epicuro – e seu genial discípulo romano Lucrécio – acreditavam que eram também essencial à felicidade o convívio fecundo e mutuamente recompensador entre os amigos seletos que frequentam o Jardim.

Dito isto, podemos apontar ainda que os filósofos podem ser diferenciados em relação à valorização da sociabilidade como meio para uma vida feliz. Não faltaram na história aqueles que supuseram possível um isolamento bem-aventurado, uma feliz auto-suficiência, simbolizada pelo faquir hindu que medita, sereno e imperturbável, quase inteiramente fechado ao contato humano. Em contraposição, o epicurismo, revivido nos últimos tempos por autores como Jean Marie Guyau e Michel Onfray, julga a amizade um elemento indispensável da vida feliz. Bertrand Russell também defendia a necessidade de “eliminar o egocentrismo, o fechamento em si mesmo e nas paixões pessoais” (ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 507).

A controvérsia opõe, portanto, os defensores de um certo ascetismo anti-social que enxerga a felicidade como busca estritamente pessoal àqueles que concebem-na como inconquistável quando desvinculada das relações intersubjetivas. De um lado, a contemplação solitária beatífica, de outro, as delícias da alteridade fecunda.

Será mesmo preciso escolher, ou podemos surfar entre estes dois pólos?

* * * * *

Eduardo Carli de Moraes é filósofo e jornalista
e criador dos sites Depredando o Orelhão e A Casa de Vidro

GRITO ROCK GOIÂNIA 2015 - 14, 15 e 16 DE FEVEREIRO - CONFIRA A PROGRAMAÇÃO COMPLETA E ASSISTA DÚZIAS DE CLIPES







GRITO ROCK GOIÂNIA 2015 
14, 15 e 16 de Fevereiro
No Centro Cultural Martim Cererê
Um festival da Fósforo Cultural


SÁBADO (14/02)




01:15 Boogarins
00:30 Shotgun Wives
00:00 Rafael Castro (SP)
23:30 Carne Doce
23:00 Tagore (PE)
22:30 Dom Casamata e a Comunidade
22:00 Lisabi (SP)
21:30 Bruna Mendez
21:00 Caffeine Lullabies
20:30 Versário
20:00 Components
19:30 Chá de Gim
19:00 Feed My Kraken (Anápolis)
18:30 Guto Sansaloni
18:00 Two Wolves (S. Canedo)
17:30 Projeto Supernova
17:00 Alfaiate Club
16:30 Meio Termo







DOMINGO (15/02)




01:15 Hellbenders
00:30 Overfuzz
00:00 Beavers
23:30 Corazones Muertos (SP)
23:00 Cherry Devil
22:30 Hell Oh! (RJ)
22:00 Dogman
21:30 Muñoz (MG)
21:00 Red Light House
20:30 Billy Brown e o Incrível Magro de Bigodes (MT)
20:00 Veementes (R. Verde)
19:30 Erotori
19:00 Damm Stoned Birds
18:30 Marmelada de Cachorro
18:00 The Moltke's Shells
17:30 Sheena Ye
17:00 Almost Down
16:30 Melodizzy







SEGUNDA (16/02)




01:15 Don L (CE)
00:45 Far From Alaska (RN)
00:15 Faroeste
23:30 Aurora Rules
23:00 Rico Dalasan (SP)
22:30 Scalene (DF)
21:45 Gasper
21:30 Petit Mort (ARG)
21:00 Tati Ribeiro
20:30 Heretic
20:00 Ataque Beliz (DF)
19:30 Coerencia
19:00 Coletivo Sui Generis
18:30 Revengers
18:00 Procedê
17:30 Usmago
17:00 Clann
16:30 Pedrada



SERVIÇO

Grito Rock 2015
Data: 14, 15 e 16 de fevereiro
Horário: A partir das 16h
Local: Centro Cultural Martim Cererê
Ingressos antecipados: R$ 15,00
Pontos de venda: Ambiente Skate Shop, Hocus Pocus, Casulo Moda Coletiva, P de Pizza, Tio Bákinas, Hops

Realização:
Fósforo Cultural
Circuito FDE

Co- Realização
Crimeia
Matuto Produção Cultural

Apoio institucional:
Lei Goyazes

Apoio:
Red Bull
Heineken
Edelweiss
A Gambiarra
Roxy Goiânia
Contradição Filmes
Fiu Fiu
Monkey

Festival Filiado a Rede Brasil de Festivais Independentes



Deu na Mídia:



segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Entrevista com CONTRACONDUTAS DA AIDS

Realizamos uma entrevista com o coletivo Contracondutas da Aids. Ou seria uma plataforma de autoria múltipla? Uma multidão? Bem, o leitor poderá averiguar isso e tirar suas próprias conclusões já na primeira pergunta. Na sua página no Facebook e no seu blog, os divíduos que compõem as Contracondutas tentam fazer uma arqueologia/genealogia do dispositivo da Aids, tentam averiguar como a Aids pôde se produzir como um discurso de verdade, capaz de fazer os “homossexuais” desempenharem o papel de um “agressor biológico” específico, hipostasiado em “doença-vírus-identitária”. Eles lançam luz sobre a aliança entre saber médico e governamentalidade responsável pela gênese desse dispositivo e sobre a exploração capitalista dos corpos, assignados ou não como aidéticos, “uma mais-valia da carne, da carne humana”, vinculada à crescente medicalização da vida. “[…] na era da “Aids de Controle”, que sucedeu a da “Aids Disciplinar”, a intenção não é mais eliminar uma parte da população para servir, entre outras coisas, de exemplo de como não se comportar, mas, sim, de manter um controle identificatório e médico sobre os corpos e a vida, manter certo número de indivíduos disponíveis como cobaias da tecnociência capitalista e o poder médico como soberano da vida”, eles nos dizem. Passemos à entrevista.

***

Depredando o Orelhão. Quem são vocês? Um coletivo, uma plataforma múltipla de autoria… uma multidão? Como se dá a escrita? Quais as potências que vocês percebem na escrita?

Contracondutas da Aids. Essa pergunta, ao mesmo tempo banal e previsível, trai a obviedade esperada, por ser uma tentativa de delimitar de antemão uma identidade que nunca esgotaria o que tanto pode ser um conjunto de “singularidades somáticas” quanto a expressão unívoca que aqui se materializa. Nos faz lembrar das manifestações de junho/julho de 2013, quando representantes da sociedade de controle expressaram com certo pesar que não sabiam como negociar com xs manifestantes, uma vez que essxs não possuíam carro de som, umx líder e uma pauta. Em todo caso, permitam-nos citar umx dxs manifestantes que, ao ser questionadx por sua identidade, disse: “Anote aí: sou ninguém.” Mas, para ir mais diretamente ao ponto, podemos ser todas essas coisas, somos um devir sempre minoritário, nas margens micropolíticas do que se tem pensado quando o assunto é Aids. Se surgiram tantas possibilidades nessa pergunta, isso é um excelente sinal. Também poderíamos dizer: somos um vírus que se multiplica sem nunca poder ser encontrado, pois no momento em que foi localizado, já mudou sua forma, somos uma cepa resistente aos anti-retrovirais dos aparatos identificadores da biopolítica. Sobre essa questão de como se dá a escrita, gostamos de pensar que não temos a menor ideia. Não que não haja um tipo de metodologia ou direção para onde caminhamos. Mas como essa pergunta acompanha a questão da identidade, poderíamos afirmar que se trata tanto de espectros que habitam as falas e escrituras – fantasmas silenciados que finalmente resolveram cintilar na sombra que há por trás dessas versões aparentemente neutras e transparentes das teorias “oficialistas” – quanto de uma série de associações e mutações que se dão quando as diferentes contracondutas se intersectam. A escrita é esse nó entre o que apenas chega como um eco e esses vultos que tentamos com muita dificuldade distinguir nas profundezas violentas onde repousam inquietas as vozes interditadas pelo discurso hegemônico. A potência está justamente na resistência à assimilação, tanto acadêmica quanto epistêmica, está na força do grito que não foi calado. Para nós, se trata de manter uma superfície incorporal, a potência de uma presença descarnada, trincar de forma irreparável a superfície insidiosamente coesa do pensamento médico-estatal, a potência que tem gênese unicamente no corpo desconhecido.

D. O que é a Aids? Qual a novidade da versão “adquirida” da síndrome da imunodeficiência? De que formas a Aids vem sendo usada como meio de controle? Quem é atingidx por esse controle e quem o pratica?

C. Bem, essas são justamente as perguntas que em grande parte resumem o trabalho que tentamos realizar. Talvez seja certo afirmar que estamos mais interessadxs em pensar o que não é a Aids em vez de tentar decifrar um enigma. É preciso ser escorregadio e misterioso como a própria doença, se quisermos jogar esse jogo. A palavra talvez não seja “novidade” (aliás, quem gosta de novidade?). Novidades são apenas lampejos que desaparecem no calar das noites, duram exatamente o momento que um novo raio leva para cair. Ao contrário, diríamos que não há absolutamente nada de novo no que fazemos, a não ser que estamos muito mais interessadxs em ouvir os ecos que há tempos viajam no vácuo que permeia os discursos infinitamente quebráveis da teoria oficialista. Mas não apenas isto, pois diferenciamos bem este trabalho que associamos com uma forma dissidente de saber da Aids (saber que fascina, pois é antes de tudo uma “verdade”, verdade que se materializa no corpo, que persiste na resistência política à bionorma), que cuida exatamente de mergulhar nos interstícios abismais que existem na aparente obviedade do vírus. É bem verdade que talvez esse tema tenha estado repousando como umx vampirx que desperta depois de trezentos anos, tentando dar sentido à realidade que já x abandonou. Sobre ser atingidx, certamente podemos pensar em termos de estilhaços de uma bomba atômica que inicialmente atinge um grande número de pessoas que morrem instantaneamente, mas há sempre a radiação que afeta a todxs, em menor ou maior quantidade. É nesse momento radioativo da Aids que talvez nos encontramos, momento aparentemente calmo em sua superfície, mas que repousa num turbilhão de fatos mal construídos, meias-verdades, uma dor que não tem forma e se volatiza, se adapta e se recria, uma metáfora performativa que cria o que descreve.

D. Diz Deleuze: “Entre o poder e o saber, há diferença de natureza, heterogeneidade; mas há também pressuposição recíproca e capturas mútuas e há, enfim, primado de um sobre o outro.” E ainda: “[…] segundo Foucault, tudo é prática; mas a prática do poder permanece irredutível a toda prática do saber. Para marcar essa diferença de natureza, dirá Foucault que o poder remete a uma ‘microfísica’”, a “[…] uma dimensão do pensamento irredutível ao saber: ligações móveis e não-localizáveis.” E, contudo, nas palavras de Foucault, “entre técnicas de saber e estratégias de poder, nenhuma exterioridade, ainda que cada uma tenha seu papel específico e que se articulem entre si, a partir de suas diferenças.” Vocês se propõem analisar os poderes e os saberes cujo cruzamento produz o dispositivo da AIDS. Que poderes e que saberes são esses? Quais as diferenças de natureza, as pressuposições recíprocas e as capturas mútuas existentes entre eles? Há algum primado de uns sobre os outros?

C. Entendemos perfeitamente o que diz Deleuze nessa sua gentil citação, especialmente se pensarmos que no caso da Aids foi preciso uma cumplicidade entre o aparato estatal e o saber médico, exatamente essa heterogeneidade e pressuposição mútua de que fala Deleuze, ou ao menos é isso que percebemos. Começamos nossas reflexões a partir do discurso da secretária de saúde estadunidense na época do governo Reagan, Margareth Hecler, que acompanhada do “descobridor” do vírus, Robert Gallo, numa aliança entre saber médico e governamentalidade, estabelece uma estratégia que só muito tempo depois revelaria suas reais dimensões. O que complica essa questão de saber e poder é que, ao menos no caso da Aids, esse saber é intrínseco ao Estado, pois como é sabido, não houve, por exemplo, publicação de artigos comprovando a tese de Gallo antes da conferência em que Hecler, em nome do governo estadunidense (e, portanto, do Estado), dita o que funcionará como mecanismo legitimador de um saber que é médico e, a princípio, nada teria que ver com a secretária de saúde. O que queremos dizer é que a “verdade” foi capturada pelos organismos governamentais, sequestrada das lentes dxs cientistas e pasteurizada num discurso absolutamente poroso. Portanto, é menos uma questão de comprovação e legitimidade do que da violência e arbitrariedade de um “método” não mais empírico, não mais da ordem dos discursos científicos, mas do controle biopolítico.

D. Na Insurreição dos Saberes Sujeitados, percebemos dois grandes movimentos: o primeiro é o reposicionamento político marcado pela mudança do nome que designa o blog e a página que vocês mantêm no Facebook; o segundo é a apreciação das relações de poder-saber da Universidade. Falem-nos desses movimentos.

C. Não que tenhamos esgotado esse assunto, mas falamos bastante disso no último texto. Mas pensando nas pessoas que não o leram e tentando resumir de forma pouco satisfatória (recomendamos que leiam), digamos que essas questões se colocaram como entraves que incomodavam e impediam que avançássemos sem deixar rastros perigosos. No caso da mudança de Dissidentes para Contracondutas foi algo que nos incomodou muito, especialmente após alguns contatos diretos com pessoas que se colocam diretamente como representantes de um movimento dissidente da Aids. Nesse sentido, a necessidade de nos diferenciar foi tanto ética quanto epistemológica, uma vez que não falamos desde esse lugar da dissidência, em grande parte marcados por uma recusa absoluta do poder médico, ado Biopanóptico, recusa em tomar medicamentos e ataques veementes ao corpo médico hegemônico. Não diremos que se resume a isso, mas, antes, esses são traços constituintes de um corpo dissidente que tomou para si a responsabilidade de aprender e lidar com o próprio corpo, que rompeu a colonização do corpo e da subjetividade empreendida por um saber que até então reinou absoluto sobre xs indivíduxs e singularidades. Nesse sentido, não há força mais provocativa e subversiva que a dissidência. Nosso trabalho, no entanto, é diferente, é uma dissidência também, sem dúvida, mas que avança em outras frentes, que utiliza e utilizará o saber produzido pela dissidência (não apenas dxs próprixs sujeitxs localizadxs pelo Biopanóptico, como também do corpo médico dissidente), mas que investiga outras questões de cunho histórico, filosófico e sociológico, especialmente as ligações da Aids com questões de governamentalidade. De forma bastante reduzida, diríamos que a razão foi essa, diferenciar mantendo ao mesmo tempo um vínculo crucial. Quanto à Universidade, enfim, é uma instituição longe da neutralidade (no sentido dos vínculos com políticas governamentais e mesmo de investimentos privados que de uma forma ou de outra funcionam direcionando as pesquisas), seus efeitos na legitimação do saber são insidiosos, para dizer o mínimo, as relações hierárquicas são mecanismos violentos de silenciamento e coerção, seu saber limitado e recortado em compartimentos mofados que não mais consegue fazer uma apreensão imanente de um acontecimento ou fenômeno – no caso da Aids, um acontecimento que está longe de se resumir às lentes dos microscópios da biotecnologia. Por essas razões, sentimos necessidade de minar esse espaço, abrir trincheiras e radicalizar na estratégia de publicação e divulgação. Não temos tempo para perder com Lattes e orientadorxs chatxs, incompetentes e conservadorxs, não temos energia e sangue para doar a essa instituição.


D. É possível falar de um processo de medicalização da vida? Se sim, em que consiste esse processo? Há algum marco inicial para ele? Como ele se conecta ao heterocapitalismo? Quais seus efeitos (disciplinares, regulamentadores, etc.) sobre os corpos e as subjetividades?


C. Até para quem é leigx nesse campo da epistemologia médica é fácil notar que da Coca-Cola e da aspirina ao coquetel, perdemos completamente a relação que no passado parece ter existido com Gaia, com nosso próprio corpo. Podemos ver essa relação ainda muito presente, por exemplo, no que resta das populações indígenas. Ao menor sinal de dor, rapidamente recorremos a um fármaco, sem atentar para como funciona nosso organismo, que tipo de comida é mais saudável e nos faz sentir melhor, etc. Somos condicionadxs a comer o que as grandes corporações querem, em especial as da indústria da carne, que ainda são o carro-chefe. Claro, sabemos que nem todo mundo pode escolher o que comer ou ter acesso a um tipo de conhecimento que permita escolher melhor, saber o que é melhor. Mas é justamente aí onde percebemos a medicalização da vida, porque já parece bem evidente que a indústria médico-farmacêutica depende das doenças que essa dieta empurrada goela abaixo causa nas populações. Portanto, a medicalização está visceralmente conectada à causa, que talvez seja ela própria em doses menores e formulações levemente diferenciadas. A margarina que quase toda a população usa tem apenas uma molécula que a diferencia da estrutura molecular do plástico. Comemos plástico saborizado. Seguramente foi no pós-guerra que houve uma enorme difusão de medicamentos que na verdade surgiram tanto de experimentos quanto de drogas feitas para os soldados. A cocaína em sua forma mais atual é derivada de uma tecnologia militar, pelo menos se estivermos de acordo com o que autorxs como Preciado já disseram. A ritalina parece atuar no cérebro de crianças de forma muito parecida com a cocaína. É importante dizer, com Foucault, que o problema não são as drogas em si, o problema é que não nos chegam drogas boas, de qualidade, que possibilitem a ampliação de potências, etc., como ocorria nas décadas de 50, 60 e 70. Drogas legalizadas, como, por exemplo, as pílulas anticoncepcionais, são mecanismos altamente reguladores e prescritivos do gênero e do comportamento “femininos”, como bem mostrou Preciado. Em relação a Aids, temos um fenômeno que merece ser acompanhado de perto que é chamado PrEP, “Profilaxia Pré-exposição”, indicada em contextos de possível risco. Já está sendo sugerida a utilização compulsória desse medicamento por “homossexuais” – identidade obsoleta que está diretamente relacionada com a Aids, tendo sido assimilada pelo corpo social a partir da emergência da Aids. Acreditamos que isso responde um pouco à última questão, sobre a maneira pela qual uma identidade, uma subjetividade é acionada e mesmo produzida a partir de um medicamento ou enfermidade.


D. Quais as condições de possibilidade ou as bases (epistêmicas, políticas, etc.) para uma teoria descolonial da Aids?


C. Parece estar implícito nessa pergunta que o que fazemos não é algo descolonial, e isso talvez se dê por uma interpretação unilateral do que seja uma teoria descolonial. Como parece impossível entrar em terreno minado sem explodir alguma bomba, permitam-nos simplesmente dizer que estamos ansiosxs para ler algo desse gênero, uma teoria essencialmente des-colonial da Aids, adoraríamos ver algo escrito em tupi-guarani sobre Aids, com certeza teríamos muito a aprender… A partir do momento em que nos vemos de certa forma submetidxs a um conjunto de regras ou diretrizes para que o conteúdo seja digno de ser considerado descolonial, essa designação não mais nos interessa. Claro que estamos apenas chamando atenção para o fato de que a própria “teoria descolonial” está longe de ser algo homogêneo, e mesmo entre alguns nomes mais notórios desse metiê, não há um consenso. Mignolo e Dussel pensam a modernidade como colonialidade em si e propõem não bem uma hermenêutica descolonial, mas, antes, um “giro” descolonial que implicaria um descentramento do ocidente como destino histórico e genealógico. Ora, isso pode estar muito bem em outros campos, e vemos com bons olhos esse giro, que consideramos essencial. Mas, no que diz respeito à Aids e suas implicações, diríamos estar num movimento muito inicial, ao menos no Brasil, para que pudéssemos falar a partir de uma cosmologia indígena, por exemplo, sobre Aids, o que certamente seria bastante interessante. Em todo caso, nos reservamos uma tarefa que não necessariamente exclui conceitos e teorias oriundas do Ocidente, especialmente os elaborados por Foucault, Donna Haraway, Preciado, Butler, etc., que, como sabemos, não são necessariamente descoloniais, nos moldes desse novo cânone. Estamos muito no início de um processo que se arrasta e sofre mutações a cada segundo e especialmente permitimo-nos nos enganar, sim, mas não a esse respeito, não na tentativa de funcionar com base em um conjunto de pressupostos descolonias, se quiserem, que nos permitiria “criar” algo completamente novo, descoladxs da colonialidade do poder, para usar o conceito específico. Tanto estamos a par disso que na postagem anterior, A Insurreição dos Saberes Sujeitados, dedicamos um trecho específico a isso, inclusive por termos interlocutorxs que chamaram atenção a esse respeito. Lá explicamos mais pormenorizadamente as limitações de tal empreendimento, com o qual, desde o início, jamais nos comprometemos. Lógico, é perfeitamente possível pensar a Aids através de outros conceitos, outras bases epistemológicas, podemos pensar a Aids desde já a partir do entendimento de que ela é uma tecnologia imperialista e colonizadora, não sem razão enfatizamos repetidas vezes a “colonização dos sujeitos”, da colonização das subjetividades por meio dessa ferramenta colonial. Para o momento, recusamos a tarefa de “criar” uma teoria, de forma alguma é o que pensamos fazer. Em termos de gestos, em termos de práticas, lutar contra o poder médico é em si um gesto descolonial, usem a teoria que quiserem, recusar esse destino reservado pelo discurso médico é descolonial, produzir um saber-poder, um tipo de conhecimento marginal, com as cicatrizes do bisturi do biopoder, é descolonial. Portanto, resumindo, teríamos que diferenciar a priori uma prática política que inclui necessariamente a produção ou não de uma teoria e algo que seria como certa hermenêutica, uma polícia descolonialista que filtraria o que é colonial ou não de acordo com alguns pressupostos.


D. Em La droga Género, lemos: “El éxito de la tecnociencia contemporánea es transformar nuestra depresión en Prozac, nuestra masculinidad en testosterona, nuestra erección en Viagra, nuestra fertilidad/esterilidad en píldora anticonceptiva, nuestro sida en triterapia. Sin que sea posible saber qué viene antes, si la depresión o el Prozac, si el Viagra o la erección, si la testosterona o la masculinidad, si la píldora o la maternidad, si la triterapia o el sida. Esta producción en auto-feedback es la propia del poder farmacopornográfico en el cual vivimos hoy en día.” O que é esse poder farmacopornográfico e como ele se relaciona com o dispositivo da Aids? Qual o papel da indústria farmacêutica nesse dispositivo?


C. Poder farmacopornográfico é um conceito de Beatriz Preciado bastante apropriado para pensarmos o papel que essas drogas têm como dispositivos reguladores e prescritivos da subjetividade e para problematizarmos a exploração capitalista sobre os corpos, uma mais-valia da carne, da carne humana. Por outro lado, esse conceito já foi criticado pela forma universalizante e totalizante em que é usado. Em todo caso, essa citação nos interessa por um possível desdobramento que nos seria útil, possibilitando evidenciar ou enfatizar o efeito de captura dessas tanatotecnologias chamadas “coquetéis” e o fato de que o próprio coquetel (de acordo com nossas fontes médico-epistêmicas laterais) é o que engendra a doença. Essa é uma das vertentes bastante difundidas entre xs dissidentes da Aids.
Responder de fato a essa pergunta levaria, pelo menos, umas 50 páginas, é um dos tópicos que merecerão uma atenção especial. Contudo, há algumas coisas que podem desde já ser mencionadas e que não constituem mais um segredo. Por exemplo, o fato de o AZT ser uma medicação quimioterápica de forma alguma indicada para atacar um vírus. Sabemos que, na verdade, por ser uma medicação que destrói as células, qualquer pessoa saudável que fizer um tratamento com AZT, consumindo quantidades nocivas todos os dias (sabemos que quimioterapias são feitas em intervalos de tempo consideráveis entre uma sessão e outra), poderá notar uma série de transformações em seu corpo parecidas com “os sintomas da Aids”: perda de peso, diarreias (essa medicação arruína a flora intestinal completamente), destruição do sistema imunológico de modo que doenças oportunistas surgirão, etc. Hoje, na era da “Aids de Controle”, que sucedeu a da “Aids Disciplinar”, a intenção não é mais eliminar uma parte da população para servir, entre outras coisas, de exemplo de como não se comportar, mas, sim, de manter um controle identificatório e médico sobre os corpos e a vida, manter certo número de indivíduos disponíveis como cobaias da tecnociência capitalista e o poder médico como soberano da vida. No futuro, ao tratar desse tópico, esperamos também poder abordar as formas pelas quais se dão os mecanismos de teste e comprovação da “eficácia” de medicamentos, questão por si só bastante perturbadora.


D. Foucault nos adverte: “[…] contra as usurpações da mecânica disciplinar, contra essa ascensão de um poder que é vinculado ao saber científico, nós nos encontramos atualmente numa situação tal que o único recurso existente, aparentemente sólido, é precisamente o recurso ou a volta a um direito organizado em torno da soberania, articulado sobre esse velho princípio”, “[…] a uma certa teoria da soberania, que seria a teoria dos direitos soberanos do indivíduo […]”. Em que sentido os corpos são plataformas políticas? Como podemos resistir à medicalização geral do comportamento, das condutas, dos discursos, dos desejos, etc., sem recairmos, por exemplo, na teoria dos direitos soberanos do indivíduo? Quais as linhas de fuga, particularmente para aquelxs que foram localizadxs pelo Biopanóptico e assinaladxs como aidéticxs?


C. Foucault se referia em grande parte aos valores e princípios que estão vinculados a um ideal burguês, princípios que emergem com a revolução burguesa: toda essa lógica de “Direitos”, “Direitos humanos”, “Todos somos iguais perante a lei”, é uma ideal que vem do Iluminismo. Sabemos como esse mecanismo que prega uma igualdade jurídica e legalista é traiçoeiro. Por exemplo, quando Chomsky, no debate que teve com Foucault, argumenta em favor de uma sociedade anarcosindicalista e prega ideais como Justiça e Bondade, Foucault lhe recorda, não sem certa violência que advém do deslocamento do óbvio, que esses são valores formados dentro e por uma sociedade de classes, são valores burgueses que precisam ser destruídos, ou que, de qualquer maneira, ao reivindicarmos justiça e “direitos”, no mínimo devemos ter consciência das implicações que há nesse exercício de liberdade e justiça. É uma questão que se complica ainda mais quando reivindicamos, por exemplo, a criminalização da homofobia ou mesmo o famoso “matrimônio igualitário”. Não estamos dizendo que as pessoas não devem se casar, mas questionando que valores estamos reproduzindo, que moral está por trás de um casal higienizado e monogâmico que acabou de dar entrada nos papéis para adotar uma criança? Que mecanismos traiçoeiros reativamos ao fazer funcionar mais e melhor o aparato jurídico-estatal, ao pedirmos mais polícia? Talvez seja nesse sentido que devemos exercer uma violência contra o óbvio ou, mais exatamente, contra isso que de tão óbvio não aparece. Não há resposta para isso, porque qualquer um que arriscar prescrever uma fórmula de como agir politicamente se compromete com uma forma de fascismo, malgrado a revolução “comunista-socialista”. Por exemplo, uma situação especialmente vinculada ao poder médico é o controle sobre o gênero, um termo mais específico cunhado pelas pessoas trans é o de Cissexismo, termo de uma importância política cortante. Com ele, se denuncia não apenas o heterossexismo, mas a imposição de um gênero que seja inteligível independente da prática sexual, que corresponda ao que a medicina e a psiquiatria impõem como inteligível. Nos damos conta de que através de um mecanismo médico-legal, um controle vertical e implacável se dá desde o nível mais molecular até o mais molar. Em outras palavras, com a patologização das identidades trans*, se cria um mecanismo médico-jurídico que patologiza de “baixo para cima”, ou seja, com esse mesmo mecanismo pode-se classificar, desde a mais tenra infância, um comportamento que se desvia da norma como patológico. Ainda assim, não podemos dizer que se perde completamente o potencial político ao se aceitar os termos médicos. Essa é uma questão que não concerne a não ser a quem vive na pele esse embate político. Contudo, há que se averiguar como esses controles que se dão na medida que se reivindica um direito, uma benesse do Estado. Se há esse controle e vigilância sobre o gênero, a sexualidade e o corpo, fica bem mais fácil entender de que forma o corpo é político e de que forma o simples fato de resistirmos às normas de gênero e à cisnorma é ato de pura violência contra essa norma, contra o controle sobre a vida. Precisamos resgatar essa ideia de violência, de sermos implacáveis, uma vez que nos chega violentamente esse controle sobre a vida, sobre quem somos, como devemos nos vestir, transar, sonhar. E acreditamos que toda essa fluidez identitária que existe hoje de forma um pouco mais rígida, especialmente na sigla LGBT, em grande medida não existiria sem o advento da Aids. Aliás, aproveitando o ensejo, nosso grande motivador é justamente a identidade atribuída à doença, é o que argumentamos desde o início. A Aids só pôde existir mediante a captura dxs sujeitxs identificadxs como responsáveis, o alarme só foi possível ao se acionar a abjeção dessxs sujeitxs como âncora, como suporte. Se hoje sabemos que não existe tal identidade, ou seja, não existe essx sujeitx homossexual (o que existe são fluxos de desejo, normas respeitadas e recusadas em menor ou maior escala), o que sobra dessa verdade, quem responsabilizaremos? Independentemente dessas especulações, o que mostramos e tentamos mostrar, entre outras coisas, é que essas identidades, essas siglas surgiram com o advento da Aids, são um produto do poder e do controle. Em fins da década de 60 e ao longo da década de 70, esses termos sequer haviam saído ainda dos manuais médicos. Claro que a dicotomia bicha/bofe, etc., existia, mas o que vemos hoje, pessoas que reivindicam sua heterossexualidade, isso jamais teria havido sem o aparecimento de todo esse aparato regulador de subjetividades “adquirido”. Quanto às linhas de fuga, acreditamos iniciar seus traçados, resistindo de formas muitas vezes fracassadas à formatação do pensar, a todas essas cadeias que paralisam e sufocam tudo que pode existir de perigoso no exercício do pensar. Não arriscaríamos dizer o que devem ou não fazer as pessoas, mas gostamos do exemplo dxs dissidentes da Aids que, de certa forma, tomaram de volta para si o saber sobre seus corpos, que investigam, resistem, criam outras estratégias. Gostaríamos de conseguir esse efeito em outras frentes, associando-nos, por exemplo, a outras plataformas de pensamento que sejam sujas e perigosas, infectando o chão esterilizado das publicações “legítimas”.

D. O que podemos esperar do próximo capítulo?

C. Não recordamos em que momento decidimos que chamaríamos de capítulo, pois isso remete sempre a um livro. Obviamente, bem poderia ser isso, mas não temos ainda os meios necessários para oficializar o que sem problemas se transformaria num livro. Enfim, se trata de pesquisas, experimentos, provocações que gostamos de dividir especialmente com gente perigosa. Não nos interessa publicar no Qualis A, não nos interessa ser citadxs em trabalhos exclusivamente universitários. O que nos interessa é infectar com o vírus da rebeldia, vírus incurável e extremamente contagioso. E é essa forma mais eficiente e estratégica de publicação que um meio virtual e fluido permite. Dito isso, podemos afirmar que nos sentimos mais livres para caminhar um pouco mais em direção aos circuitos intocados dos conceitos médicos, do Olimpo da microbiologia, dxs deusxs do saber absoluto sobre a origem e fim da vida. Com o teatro encenado por Margareth Heckler e Robert Gallo, uma nova forma de empiria surgiu (ou, pelo menos, a antiga foi implodida). São questões que nos interessam certamente, pois, para nós, a Aids nunca é um fato isolado, é uma engrenagem que faz funcionar melhor todo o aparato de poder e controle do heterocapitalismo, e por isso a chamamos de Biopanóptico. Enfim, o corpo é um campo de batalhas.